
Um artista entre duas obras que, embora próximas em suas origens, não poderiam ser mais diferentes em sua execução; este é o lugar em que se encontra o diretor Mike Flanagan ao adaptar o romance que continua a história de O Iluminado, o livro, sem alienar os fãs de O Iluminado, o filme. Basicamente, é uma tentativa de reconciliação entre as visões e os egos, bastante avolumados, de Stephen King e Stanley Kubrick. Por um lado, não se pode negar que a visão nítida na mente da maioria do público é a do filme de 1980: quando se fala de O Iluminado, a imagem aterradora do rosto de Jack Nicholson pela fresta da porta aberta a machadadas, além de muitos outros momentos emblemáticos, é o que surge imediatamente na imaginação do público. Por outro, o diretor tem muito em consideração a obra literária de King, sendo esta sua segunda adaptação de um livro dele, cuja influência é notada fortemente em vários projetos seus, como a série A Maldição da Residência Hill [2018]. O resultado não é tão equilibrado quanto se poderia esperar, mas é satisfatório. Mesmo contando com uma atmosfera interessante e elementos narrativos típicos de uma história de terror de Stephen King, a sombra da obra-prima de Kubrick, em particular no terceiro ato, é inescapável. Doutor Sono ainda é um filme que se sustenta por seus méritos, mas que carece de uma identidade mais definida ao tentar agradar a gregos e troianos.

Ao iniciar a narrativa, três elementos iniciais já definem que o passado referido é o do filme. São eles: o logo clássico da Warner Brothers, a tema principal composto por Wendy Carlos & Rachel Elkind e a tomada aérea por cima dos lagos e montanhas, dando ao público o que ele espera. As lembranças e os fantasmas, literais, do passado acompanham um fragmentado e envelhecido Danny Torrance, mérito da equipe de maquiagem e de uma interpretação bastante sensível de Ewan McGregor. É aqui que Flanagan se refestela na fanboyzice e recria de forma muito acurada cenas de O Iluminado, sendo minucioso em detalhes como o padrão do carpete do hotel Overlook, o figurino dos personagens e a horizontalidade da câmera, além de cenários como a sala de entrevista de emprego. O diretor, ao invés de recriar cópias digitais dos personagens ou rejuvenescê-los digitalmente, optou por usar atores parecidos nessas recriações, o que funciona bem, com destaque para Carl Lumbly, interpretando o cozinheiro Dick Halloran. Mesmo quando a cena em si não é um flashback que recria uma cena do longa de Kubrick, há o uso da cinematografia, que, por vezes, rememora quadros específicos, como uma visão aérea da cidade cujos quarteirões reproduzem o padrão do labirinto e um plano de nuca em um corredor de supermercado, evocativo de como a câmera acompanhava o pequeno Danny no hotel. Há, por fim, um contraste forte entre as cenas do presentes, escuras e lúgubres (em um constante e excessivo filtro azulado), e as que recriam momentos da infância, que, mesmo traumática, ainda tem uma fotografia mais quente e colorida.

Um dos pontos mais interessantes do roteiro de Flanagan é como ele trabalha algo central no livro de King, mas que não foi abordado com ênfase no filme de Kubrick: o alcoolismo. O diretor está ciente, como entusiasta da história original, de que os elementos sobrenaturais são uma alegoria para o horror que o vício pode provocar na vida de uma família (e o capítulo do livro em que um Jack Torrance alcoolizado inadvertidamente quebra o braço de seu filho bebê é um dos mais assustadores da obra de King). O primeiro ato do filme, portanto, se configura como um drama eficiente de um homem destruído por recordações da infância, pela falta de um propósito e pelo vício e terror que o pai lhe deixou de legado. Elementos psicológicos e sobrenaturais se mesclam em sua memória (como a incontinência urinária por ter medo de rever a velha nua e deformada ao ir ao banheiro) até o ponto de ruptura em que Danny procura um nova condição ao mudar de cidade e frequentar as reuniões dos Alcoólicos Anônimos. Todas as cenas, aliás, que envolvem o grupo de apoio são muito autênticas e levam o protagonista ao quase fechamento de seu arco dramático, quando ele passa a usar seus talentos de maneira positiva em um abrigo de idosos. No entanto, nem Flanagan nem o público ficariam satisfeitos somente com um estudo de personagem, há de se aumentar o elemento de ameaça sobrenatural e os sustos, afinal este é um filme de horror, além, é claro, de reverenciar mais o clássico de 1980.

Na segunda metade do filme, Danny se vê no meio do conflito entre um grupo de vampiros sugadores de vapor (o “brilho” dos iluminados) e uma menina extremamente poderosa, Abra Stone, personagem de Kyliegh Curran (“Ninguém brilha como você”, lhe é dito). Crianças e ameaças sobrenaturais, mais Stephen Kingy impossível. No entanto, para estabelecer este ponto de virada da narrativa e apresentar os novos personagens, King teve muito mais espaço (ou páginas) do que Flanagan. O resultado é irregular. A personagem de Emily Alyn Land, Andi “Cascavel”, por exemplo, tem uma apresentação muito promissora, mas parece que é deixada de lado no resto do roteiro, cumprindo apenas a função de ser a novata no grupo para quem as coisas são explicadas. Já a Rose “The Hat” de Rebecca Ferguson se mostra uma antagonista cativante e ameaçadora ao mesmo tempo, confirmando a versatilidade da atriz sueca. Infelizmente, o mesmo não pode ser dito do restante dos membros do grupo de vilões, que não deixam de soar estereotipados e desinteressantes. Por fim, Curran traz vivacidade à trama com uma personagem que poderia ter saído das páginas de Os Novos Mutantes, diferenciando-se de Danny, já que se entusiasma e controla melhor seus poderes ao invés de ter medo deles, demonstrando como um lar estruturado com pais compreensivos exerce uma função primordial na potencialização das habilidades de uma criança.

O tom da narrativa muda a partir da dinâmica entre os personagens de Gregor, Ferguson e Curran, dando espaço para que Flanagan e a equipe de design de produção criem cenas e ambientes muito interessantes, de uma miniatura da cidade no meio de uma praça pública até uma representação física do subconsciente de uma personagem que se assemelha a uma catedral de livros e informação. Aliás, os combates psíquicos entre Abra e Rose "The Hat" estão entre os momentos mais inventivos do longa, com sequências em que o diretor brinca com a mudança de eixo da câmera, ocasionando uma sensação de desorientação e estranheza. A trilha dos Newton Brothers que conduz essas cenas determina um ritmo ocasionado por batidas urgentes de coração e cordas que remetem ao trabalho de Carlos e Elkind. Essa opulência visual e sonora, entretanto, não encontra par nos diálogos que, na maior parte das vezes, tentam contrapor as imagens alegóricas com frases mezzo autoajuda, mezzo aconselhamento espiritual, como “Você se leva para onde for”, “Estamos todos morrendo” e “Nós não terminamos nunca”.

Mas esta não seria uma sequência de O Iluminado sem a presença de um dos seus mais famosos personagens: o Hotel Overlook e obviamente Flanagan mantém a ansiedade do espectador até o clímax do filme. Sua reconstrução do amplo e aterrorizante cenário é minimalista e impressionante até o mais insignificante detalhe de uma forma mais obsessiva ainda do que a de Spielberg em Jogador Número Um [2018]. Além disso, muitas cenas são referenciadas e reencenadas com novos personagens, o que faz o longa tentar atingir um difícil equilíbrio entre a nostalgia demandada pelo público, estúdio e até por seu realizador e a falta de personalidade. Levando-se em conta o que a continuação de um clássico absoluto poderia ter se tornado nas mãos de um diretor menos talentoso ou de alguém que não entende os materiais-fonte (livro e filme), pode-se dizer que Mike Flanagan se sai bem em sua empreitada, principalmente ao construir um arco dramático relevante para seu protagonista e criar duas personagens femininas fortes, mas não que essa sequência seja um produto da originalidade ou do estilo de seu realizador, já que a sombra de seus antecessores é grande demais para que ele possa ou queira escapar.
Cotação: ★★★
