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  • Lourenço Becco

Homem-Aranha: Longe de Casa | de John Watts


Ser o Homem-Aranha é difícil. Ser fã do Homem-Aranha também não é fácil. Ambos estão acostumados ao sofrimento e à decepção: o Aranha por causa de seu senso de responsabilidade em relação às pessoas e o fã por seu senso de fidelidade em relação ao herói. Por pior que seja a adversidade, o Homem-Aranha sempre persiste; enquanto que o fã, por mais desastrosa que seja a história (evitar a palavra "clones" é de bom tom), não desiste de acompanhar suas aventuras. Essa persistência entre altos e baixos também pode ser vista nas versões do teioso para o cinema. Sam Raimi entrou para a história das adaptações cinematográficas de super-heróis com o já clássico Homem-Aranha [2002], que foi seguido pelo ainda melhor Homem-Aranha 2 [2004] e, olha a decepção aí, Homem-Aranha 3 [2007], que sofreu demais com a intervenção dos executivos. Houve então o inevitável reboot, com O Espetacular Homem-Aranha [2012] e O Espetacular Homem-Aranha 2: A Ameaça de Electro [2014], ambos de Mark Webb, tão mal-recebidos que nem uma trilogia conseguiram formar. Em 2016, a prece dos fãs foi atendida e o Homem-Aranha passou a integrar o Universo Cinematográfico do Marvel Studios! Fim do sofrimento? Não completamente, por que, analisando os filmes em que Tom Holland já apareceu como o Amigão da Vizinhança, percebe-se que o Homem-Aranha faz mais bem ao Universo Marvel do que o contrário, como prova o seu segundo filme-solo, Homem-Aranha: Longe de Casa, dirigido mais uma vez por John Watts.


Entre o filme anterior e este aconteceram nada menos do que Vingadores: Guerra Infinita [2018] e Vingadores: Ultimato [2019], e os efeitos disso são grandes. As pessoas que "bliparam", ou seja, despareceram com o estalo de Thanos, voltaram ao mundo 5 anos depois. Coincidentemente, por que a situação para os roteiristas Chris McKenna e Erik Sommers já estava complicada demais, todos os amigos de Peter do filme anterior também tinham blipado e continuam com a mesma idade. Além de se adaptar a essa nova realidade, o mundo, em geral, e Peter, em particular, têm que aceitar a morte de Tony Stark, cuja ausência parece ser preenchida por uma enxurrada de imagens do Vingador Dourado, tanto em grafites nas paredes quanto em desenhos infantis em uma sala de aula. Mas, como este é o filme da Marvel mais direcionado ao público adolescente, o clima soturno de luto não pode ser a tônica da produção, logo o grupo de amigos se vê em uma excursão pela Europa, em que o clima de paquera e de leveza dos filmes oitentistas de John Hughes é recuperado. Aliás, este é um filme bem divertido, cuja piada inicial, que envolve Whitney Houston e Comic Sans, já estabelece o tom jocoso da narrativa. Até a trilha sonora de Michael Giachino parece contagiada por essa decisão, com variações tanto cômicas quanto heroicas. No entanto, essa decisões não atingem a figura de Tony Stark, continuamente presente na trama como motivação e alicerce dramático, como discutiremos mais tarde.



A decisão de colocar o Homem-Aranha em um ambiente completamente novo, potencializando a sensação de peixe-fora-d'água do Aranha nos subúrbios vista no filme anterior, é um acerto, pois se afasta das encarnações anteriores do herói e transforma o filme em uma mistura de road-movie teen com thriller internacional de espionagem, que deixa espaço para o desenrolar dos relacionamentos pessoais e mantém a trama sempre em movimento. Mesmo não sendo originais, os momentos de paquera e início de relacionamento amoroso entre Peter-MJ e Betty-Ned são divertidos e devem ter grande ressonância com o público-alvo do filme, tanto na sensibilidade do primeiro casal quanto na pós-modernidade do segundo. Aliás, todo o elenco jovem e multicultural que forma a classe de Peter se sai muito bem (o que não pode ser dito dos professores, cujos momentos cômicos são bem dispensáveis). Outro acerto do roteiro nessa fase é a tensão, muito característica nas histórias do personagem, entre a vida pessoal de Peter e as obrigações heroicas do Aranha, o que sempre é agravado pela sua típica falta de sorte. É uma pena, portanto, que o diretor John Watts continue a filmar tudo, com exceção das grandes cenas de ação, com uma falta de imaginação digna de quem dirige uma comédia romântica original da Netflix. Sorte a dele que tanto Tom Holland quanto Zendaya conseguem tornar autênticas as suas versões desses personagens icônicos e têm muita química juntos.



Felizmente, a concepção das cenas de ação melhorou muito em relação ao primeiro filme: os cortes passaram a ser mais espaçados e a movimentação da câmera, mais fluida, possibilitando a compreensão do espaço. O escopo também é mais grandioso que no primeiro filme e, a partir da segunda metade, o espetáculo é potencializado pelas sequências com um dos personagens mais aguardados pelos fãs do aracnídeo: Mysterio! Durante muito tempo, foi considerada impossível a aparição de Mysterio em live-action por conta de seu visual, que varia do espalhafatoso ao ridículo, com sua imensa capa roxa e o indefectível aquário na cabeça. A escolha foi acertada não só ao abraçar o  visual chamativo do personagem, mas ao potencializá-lo com mais elementos visuais, como as luzes de led em seu uniforme. Para se contrapor a isso, foi escolhido um ator que traz credibilidade a qualquer papel: Jake Gylenhaal. Tanto é assim que a cena mais expositiva do longa é protagonizada por Gylenhaal, que a torna interessante pela força de seu carisma e dedicação à motivação do personagem, algo que poucos atores conseguiriam. Além disso, a transposição de seus poderes para a tela, por serem de um caráter muito visual, ficou extraordinária, dando origem a uma das sequências mais assombrosas e estimulantes em termos de perspectiva e imaginação já vistas em um filme de super-herói. Além disso, a própria natureza das habilidades e perícias do personagem possibilitam a inserção de um comentário metalinguístico engenhoso sobre como o funcionamento da indústria cinematográfica. Como se isso não bastasse, a introdução do personagem não é aleatória, conectando-se a fatos relevantes, embora periféricos, de outros filmes da Marvel.


Dois aspectos, no entanto, ainda incomodam muito nessa versão do Homem-Aranha: a sua aparente falta de evolução nos filmes-solo e a substituição do Tio Ben por Tony Stark como figura paterna. O Peter Parker que percebeu (com Tony Stark, é claro) que o uniforme não faz o homem e foi maduro o suficiente pra recusar os louros de ser um Vingador e aceitar sua responsabilidade como herói da vizinhança, parece ter aprendido muito pouco, pois tenta fugir de suas responsabilidades, se recusando a atender as chamadas de Nick Fury e a levar o uniforme para a viagem. Pode-se argumentar que, após passar por uma experiência de morte e ressurreição, é natural que Peter priorize a diversão, mas o roteiro do filme nunca faz essa conexão. O Homem-Aranha que aparece nos filmes dos Vingadores parece ter um senso de responsabilidade mais sólido que o dos filmes-solo, o que é problemático, pois se trata do mesmo personagem. Já a influência do Homem de Ferro é maior com ele morto do que vivo, pois a questão de quem levará adiante seu legado é o cerne da trama. A morte do tio Ben, por sua vez, não é nem citada aqui (no outro filme também não), sendo que suas iniciais na mala de Peter são a única referência àquele que, em todas versões do personagem, foi o responsável pelo compasso moral do herói. É como ignorar a morte dos pais de Bruce Wayne! Não precisa recontar a origem, mas se certificar de que o personagem saiba que, com grandes poderes, vêm mesmo grandes responsabilidades, e não grande tecnologia ou uniformes descolados (só neste filme, há 4!). A Tia May, por sua vez, foi relegada ao papel de alívio cômico, e o fato de ter descoberto a identidade secreta de Peter tem pouca relevância na história. Não é o bastante, pois, retomar o sentido de aranha se o senso de responsabilidade tem que ser relembrado ao personagem por Nick Fury com citações ao Homem de Ferro. Seria mais sincero rebatizar o personagem como Iron-Spider na sequência.

Homem-Aranha: Longe de Casa se estabelece como um avanço em relação ao primeiro filme da franquia, mesmo tendo que se enquadrar no plano maior de Kevin Feige para o Universo Cinematográfico da Marvel, o que pode impedir uma visão mais autoral do personagem como a que Sam Raimi logrou fazer. De qualquer forma, o desfecho do segundo filme sempre deixa espaço para rumos inesperados no futuro. O inevitável terceiro capítulo (sorry, Mark Webb), a propósito, vai ser a sexta vez em que Tom Holland veste as teias, consolidando-o na memória coletiva da nova geração como o Homem-Aranha definitivo e o ator que mais vezes interpretou o papel, com o dobro de vezes do segundo lugar, um feito que, mais uma vez, só foi possível por causa da engrenagem gigantesca do MCU. O grande desafio para o futuro do personagem, portanto, é encontrar um equilíbrio entre o seu papel de Vingador e o de Amigão da Vizinhança, a fim de trazer Peter Parker, em mais de uma forma, para mais perto do seu lar. 

Cotação: ★★★ 1/2

PS: Há duas cena pós-créditos muito significativas para, respectivamente, o futuro de Peter Parker e o do Universo Marvel. Não deixe de vê-las.


PS 2: O filme é dedicado à memória de Steve Ditko e Stan Lee, pois é o primeiro a ser feito após a morte dos criadores do Homem-Aranha, Mysterio, Tia May e tantos personagens inesquecíveis.

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