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  • Lourenço Becco

Rocketman | de Dexter Fletcher


Lembro que, quando o Rock já não era tão jovem, mas eu era, havia um LP do Elton John na minha casa. Nikita era a faixa-título. Como muitos garotos dos anos 80, muitas vezes ouvi esse disco e vi o extravagante clipe da música na MTV. Mas não fui o único nem o primeiro. Para cada década, havia um Elton John reinventado: na década de 70, houve o estouro do rock melódico e pop de Elton e seu vibrante piano; na década de 80, Elton continuou em pé, adaptando-se muito bem às novas mídias e, na década de 90, feliz a criança que podia assistir a sua fita VHS de cor verde de O Rei Leão [1994], embalada por "Circle of Life" da trilha sonora ganhadora do Oscar, solidificando Elton John como um astro inexaurível do mundo Pop! Todas essas gerações poderão ter um vislumbre do homem por trás dos grandes óculos e excêntricos figurinos, em Rocketman, filme "baseado em uma fantasia real", o que relativiza a fidelidade documental aos fatos e realça a verdade da criação e da inventividade que estão presentes em cada uma de suas canções.


Durante muito tempo, uma cinebiografia de Elton John esteve em seus planos, chegando-se a cogitar Justin Timberlake, que interpretou o astro no cilpe de "This Train Don't Stop There Anymore", para o papel, mas o projeto mudou quando Elton John conheceu Taron Eagerton nas filmagens de Kingsman: O Círculo Dourado [2017], cujo diretor, Mathew Vaughn ficou encarregado da produção do longa. Como o próprio Eagerton já havia interpretado a canção "I'm Still Standing" na animação Sing: Quem Canta Seus Males Espanta [2016], o diretor Dexter Fletcher viu ali a oportunidade de evitar a dublagem das canções como fora feito em Bohemian Rapsody [2018], longa que ele mesmo fora encarregado de finalizar após a demissão de Bryan Singer. Outra decisão acertada foi a de se afastar, tanto quanto possível, do formato de cinebiografia que simplesmente vai mostrando os eventos mais importantes da vida de um artista, como se marcasse uma lista cronológica da Wikipedia. A alternativa a isso foi repensar o filme como um musical, em que as canções serviriam como um modo de avançar a narrativa através de números musicais, mais ou menos como fora feito em Across The Universe [2007]. Nesse cenário, chamar Giles Martin, filho do produtor dos Beatles, George Martin, como supervisor musical pareceu mais do que adequado. Tendo sido definidos o formato, o protagonista e a direção musical, faltava decidir o quão franco o filme seria com os fatos mais controversos da trajetória do músico, mas, nesse quesito, não houve concessões.



A franqueza em relação ao biografado está patente no fato de que o filme utiliza o recurso do grupo de apoio, onde se compartilham as dores e os erros da forma mais aberta, como moldura narrativa. Dessa forma, um Elton John em uma esdrúxula fantasia de demônio vai se desconstruindo à medida em que a narrativa faz o mesmo com a figura do astro que narra a si mesmo. Como diz a letra de "Saturday Night's Alright", antes de "se afogar no fundo de uma garrafa", Elton, ou melhor, Reggie Dwight é "um produto da classe operária" de Londres. O subúrbio londrino não é fotografado de forma realista, como se vê quando Elton é confrontado com o garoto Reggie e seu passado, em uma sequência em que apenas os dois têm cores fortes em um ambiente festivo, mas dessaturado. Sem interesse em nada que não seja música, o menino é atormentado tanto pelo sarcasmo e absolutismo da mãe (reparem como ele toma um susto e treme quando seu nome é gritado por ela) quanto pelo distanciamento e fleuma de seu pai (que não o abraça e simplesmente estala os dedos quando quer que ele se levante de sua cadeira). Esses sentimentos de desalento e paixão são evidenciados na sequência em que toda a família canta "I Want Love" e naquela em que o menino rege uma orquestra imaginária com uma lanterna em seu quarto, jogando pela janela, felizmente, qualquer indício de naturalismo e estabelecendo o tom da narrativa.


A culpa que parece sentir pelo fracasso de suas tentativas de aproximação dos pais e do casamento deles só é aplacada quando Elton descobre o Rock and Roll, que lhe tolhe a timidez no frenesi de seu ritmo. Este ponto de virada também marca a passagem para a vida adulta naquele que é provavelmente o número musical mais elaborado do filme: em um falso plano-sequência, o menino torna-se homem ao passar por uma cerca e agita um parque de diversões ao som de "Saturday Night's Alright", com ecos de West Side Story e elementos de Bollywood, enquanto a câmera desliza suavemente entre e acima dos dançarinos. O diretor, aliás, faz um uso lúdico e subjetivo da percepção temporal várias vezes: o tempo desacelera por segundos para mostrar a importância do acaso quando Elton recebe o envelope com as letras de Bernie Taupin e acelera, variando de meses a anos, nos números musicais de "Honky Cat", "Pinball Wizard" e "Bennie And The Jets", abordando respectivamente o excesso de Elton John a respeito de compras, apresentações ao vivo e drogas/sexo. O roteiro, portanto, ao mesmo tempo que não se exime de abordar esses temas mais polêmicos, ao fazê-lo através das canções, não permite que eles pesem demais no tom da narrativa.


Desta forma, é através das letras de Taupin, até mais do que da música de Elton, que a história é contada. A amizade deles é ponto fulcral do filme, se caracterizando como a história de amor do longa. A cumplicidade dos dois é evocada de forma muito singela no momento da criação da melodia de "Your Song", primeiro sucesso da banda, em que Jamie Bell transmite a emoção que seu personagem sentiu ao ver seu texto se transformar em música. O início do sucesso e a derrocada do vício também são apresentados de forma muito visual com dois sucessos do cantor. Utilizando uma câmera baixa, que põe o expectador na plateia do Troubadour, o diretor filma a apresentação de "Crocodille Rock" em uma tonalidade azul inefável que toma contornos de delírio quando a canção literalmente faz todos ali flutuarem, numa sacada muito boa do roteiro. Já a faixa-título é cantada em um seguimento onírico, que se inicia com a overdose de Elton, em que ele se vê criança no fundo de uma piscina, e termina, após a desintoxicação, na apoteose do concerto de Dodger Stadium, uma alegoria eficaz na qual ele mesmo, no turbilhão do sucesso hiperbólico, vira o Homem-Foguete, cuja cabeça literalmente fumega. É interessante notar que as letras de algumas músicas, como "I Want Love", "Yellow Brick Road" e "Rocketman", foram levemente alteradas para melhor se encaixarem na narrativa.



Mas nenhum dessas sequências teria êxito se a caracterização do protagonista não funcionasse, já que, a fim de não ser mais quem ele era, e sim quem ele quer ser, a transformação de Reginald Dwight em Elton John deve ser escancarada com todo o luxo e cores nos figurinos. E que figurinos! Inicialmente vê-se um lenço no pescoço ou uma blusa de seda estampada, e, gradualmente, as roupas (e os óculos!) vão ficando mais arrojadas e exuberantes a cada cena até o ponto em que os fãs do artista passam a reconhecer a década que o filme retrata pelo figurino, ou stage costume, utilizado na cena. A equipe de cabelo e maquiagem também faz um trabalho excelente, já que o longa não se furta de representar os diversos penteados e a calvície precoce do protagonista, mesmo não sendo tão bem-sucedida no envelhecimento dos personagens. Já a iconografia de Elton John é tão bem reproduzida que, mesmo na contraluz ou de costas, a silhueta característica é imediatamente reconhecida. Para coroar este esmerado trabalho de caracterização, a performance de Taron Eagerton, apesar de não ser uma imitação, incorpora traços do cantor, como o jeito de olhar pras teclas do piano arqueando os lábios e levantando uma das sobrancelha, além de ter um desempenho vocal à altura do papel. Há, sim, momentos em que ele se entrega ao overacting, mas, dado o tom exagerado de musical da broadway do filme e seu protagonista, não chega a incomodar.



No entanto, por mais criativas que sejam essas decisões, o filme não deixa de se render a algumas das convenções mais irritantes do gênero, como o plano-detalhe do anúncio de jornal para uma banda, a montagem do sucesso repentino com manchetes pululando na tela, o empresário mal-intencionado e o lenço manchado de sangue após o uso de cocaína. Aliás, o terceiro ato sofre um pouco com a falta de dramaticidade ou com o modo formulaico com que o roteiro trata a derrocada e o restabelecimento do cantor. O casamento de Elton John, por exemplo, mesmo tendo acontecido realmente, não tem nenhum impacto na narrativa, já que é retratado de forma muito sintética, já que eles se conhecem, casam e se divorciam em três cenas, que poderiam muito bem nem estar no filme. Além disso, os diálogos nem de longe são tão inspirados quanto as letras de Taupin ("Yellow Brick Road", por exemplo, se mostra muito mais certeira do que as falas pouco inspiradas), reduzindo o impacto de momentos importantes. Por fim, o filme não tem uma cena final apoteótica e catártica como, é impossível não comparar, o concerto do Live Aid em Bohemian Rapsody, o que pode causar uma sensação de anticlímax no frequentador ocasional do cinema. Não para o fã, porém, por que pra mim a recriação do clipe de "I'm Still Standing", um dos mais cafonas e queer dos anos 80, já foi melhor do que o filme do Queen inteiro!


Rocketman celebra e faz justiça à obra e ao legado de dois dos maiores artistas do nosso século (não podemos deixar as maravilhosas letras de Taupin de lado), reimaginando a vida de Elton John com a verve, o engenho e o glamour que o tornaram uma figura inconfundível. Não é um filme perfeito, mas a perfeição é superestimada. A diversão e a empolgação, sim, estão em todas essas maravilhosas canções. Porém, mais do que se mostrar como componentes de um greatest hits filmado do autor, a música aqui é parte essencial da experiência, que também é visual na singularidade das recriações musicais e da coreografia. A fantasia meio onírica que resulta dessa mistura está longe de se configurar como um relato documental em seus detalhes, mas permanece honesta à verdade do que aconteceu, além de ser, assim como seu protagonista, embora nem sempre coerente, definitivamente memorável.​


Cotação: ★★★★


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