
Atenção: Os três últimos parágrafos deste texto contêm revelações do terceiro ato do filme.
"Mas o homem espia o homem inexoravelmente!" Cyro dos Anjos
Jean-Paul Sartre, em Entre Quatro Paredes, já afirmava que o inferno são os outros, mas o que acontece quando os outros somos nós mesmos, em carne e nervos? Jordan Peele se debruça sobre essa pergunta em seu segundo longa-metragem, o perturbador Nós [2019]. A figura do duplo, principalmente como uma cisão maligna da personalidade, é frequente na literatura (de O Duplo, de Dostoiévski a O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde), nos quadrinhos (O Incrível Hulk, de Lee e Kirby, mais famosa releitura de Jekkyl e Hyde), na música (O Lago dos Cisnes, de Tchaikóvsky) e no cinema (quem não lembra da luta entre Clark Kent e uma versão maligna do Homem de Aço naquela que é a única cena memorável de Superman III [1983]?). Via de regra, quando se lança mão deste tipo de temática, a abordagem recai sobre o indivíduo e suas imperfeições ou sobre uma ideia generalizadora do homem enquanto detentor de seu livre-arbítrio ou fantoche do destino. Peele não se abstém de trabalhar uma perspectiva dramática subjetiva em seus personagens, mas o foco de sua argumentação se estabelece a partir de um questionamento social. Se em Corra [2017] o diretor partia de uma premissa inusitada para discutir o racismo, agora ele aumenta o escopo para abordar a toxicidade das relações socioeconômicas de poder que fundaram e ainda hoje sustentam a sociedade americana. Isso tudo sem deixar de construir um filme de horror envolvente e assustador.


Para contar a história de uma família que se depara com versões deturpadas deles mesmos e amplificar este senso do bizarro, Jordan Peele faz uso de um conjunto de imagens, sons e símbolos que detidamente imergem o espectador em uma sensação de desconforto, perdurando além do último quadro do filme. Uma parede sem fim preenchida com coelhos engaiolados, muitas imagens refletidas (smoke and mirrors literalmente), planos, objetos e números simétricos (tesouras, algemas, óculos e o número 11), máscaras que mais revelam do que ocultam, o assovio de uma canção infantil, um estalar de dedos, todos esses elementos adicionam uma camada de incômodo reiterado. Há ainda o uso de objetos que falham quando se precisa deles, como isqueiros, motores e softwares domésticos. Não só a montagem segura é responsável pela tensão do filme como a precisa edição de som, que, mesmo não escapando dos jump scares, investe em tons dissonantes, como notas agudas de violino e o som de lâminas de uma tesoura se fechando, além do uso do silêncio. Essa sensação de estranhamento é expressa, ainda, tanto na dissonante trilha sonora original de Michael Abels, com a aterrorizante "Athemn", quanto na utilização diegética de canções pop em cenas de tensão, como "Good Vibrations", dos Beach Boys, "Five On It", de Luniz e "Fuck Tha Police", do N.W.A.!




Após o estabelecimento dos personagens (uma família, como em O Iluminado) e do cenário (o litoral, como em Tubarão [1975], referenciado na camisa de Jason), o filme logo se estabelece em sua primeira metade como adepto do subgênero de Invasão Domiciliar (como em Esqueceram de Mim, referenciado em um diálogo hilário). Este encontro com as suas contrapartes já é sugerido em um belo plano aéreo na praia, cujas sombras remontam à Alegoria da Caverna de Platão, que volta a ser abordada de forma mais incisiva no terceiro ato do filme. Aliás, o roteiro de Peele é ótimo em usar pistas e recompensas, tanto em elementos narrativos e temáticos quanto em plantar objetos (ambulância, barco e arma sinalizadora), que terão utilidade mais adiante. Mesmo o espectador mais atento se beneficia muito em uma segunda visita ao filme por este emprego bem executado do foreshadowing, como na cena em que uma personagem usa sua habilidade de bailarina mencionada anteriormente para se libertar. Já em sua última metade, a trama ganha contornos de Os Invasores de Corpos [1978] e A Noite dos Mortos Vivos [1968] conforme a paranoia e o senso de sobrevivência se potencializam. Mr. Peele claramente fez o seu dever de casa, e o elenco também, já que assistiu a uma lista de 10 filmes indicada por ele.

A ruptura dessa normalidade é mais patente por que a relação familiar é bem trabalhada desde o início pelo roteiro. A cena da viagem no carro (seria essa uma marca de Peele?) já estabelece as características de cada membro e o tom daquele relacionamento. O humor do filme, inclusive, funciona por que advém dessa dinâmica entre eles, como na piada sobre a chave. Winston Duke é o que melhor aproveita essas oportunidades, construindo uma figura amorosa, mas que não consegue proteger sua família. Evan Alex e Shahadi Wright Joseph estão muito bem em seus duplos papéis, em especial esta última, cuja versão maligna nunca falha em assustar com seu sorriso medonho. Mas, este é o filme da Lupita Nyong'o! É impressionante como, nos 5 anos após sua vitória na categoria de Atriz Coadjuvante no Oscar, a talentosa atriz tenha sido relegada a este papel mesmo, o de coadjuvante. A oportunidade de interpretar tanto a protagonista quanto a antagonista do filme não escapou a Lupita, que caracteriza sua Adelaide como uma mulher que sofre de estresse pós-traumático, com uma inflexão baixa na voz, o olhar alarmado e um tremor delgado no corpo quando fala sobre sua infância. Já Red, sua contraparte, é completamente sunistra, quase inumana, com sua postura sempre ereta, seu olhar vidrado e ensandecido e, acima de tudo, sua voz! Uma voz gutural, que luta para sair do que parece ser uma garganta destroçada, baseada, segundo a atriz, em vítimas de disfonia funcional causada por trauma. Uma interpretação vistosa em suas minúcias!


Nós é, acima de tudo, uma metáfora dos Estados Unidos e da sua divisão de classes, um embate entre privilegiados e excluídos. Peele deixa isso bem claro a partir do título original (Us ou U.S.) e da cena inicial, com o comercial de Hands Across America, uma das muitas campanhas beneficentes dos anos 80 que tinham mais o propósito de fazer a classe média e a privilegiada se sentir bem consigo mesmas em um grande evento midiático do que realmente ajudar os necessitados (o projeto foi um fracasso em termos de arrecadação, mal pagando os seus próprios custos). A comunidade subterrânea dos acorrentados se apropria dessa visão condescendente, ou seja, do conceito, uma corrente de pessoas de mãos dadas, e do slogan, "Nós somos americanos!", diz Red, numa cena que carece de sutileza. Como indumentária, são escolhidos um macacão vermelho e uma luva na mão direita, que mimetizam o figurino de "Thriller" como o uniforme de um exército revolucionário. Essas reinterpretações de signos da superfície, juntamente com a aparência distorcida da imagem de seus habitantes, causam uma sensação de "inquietante estranheza", de algo "bizarramente familiar", como classifica Freud em seu texto "O Inquietante", que trata, entre outras coisas, de traumas infantis. Não é à toa que Adelaide passa grande parte do filme algemada, não só à sua perturbação emocional, como à sua classe e raça.

A dicotomia de que os Estados Unidos foram erguidos em cima de uma classe subterrânea invisível e marginalizada para o sustento de outra mais favorecida fica patente quando entra em cena a família de brancos. Fúteis e estéreis, se preocupam mais com símbolos de status (iates e cirurgia plásticas) do que com as relações familiares. São incapazes de lutar em situações fatais ("Não quero sair do meu lugar confortável", diz o personagem de Tim Heidecker) e, portanto, rapidamente eliminados. Já os acorrentados vivem em um mundo à parte, prenhe de escuridão, como indicam os nomes de seus habitantes infantis (Umbrae e Pluto), uma extensão da floresta dos contos de fada primitivos, o que é reforçado pela maçã derrubada pela menina antes de entrar na Casa dos Espelhos e pelo "Era uma vez..." que inicia a narrativa de Red. No entanto, alguns desses símbolos são por demais óbvios, como o plano do frisbee vermelho sobre a toalha, a frase "Encontre a si mesmo" na fachada da Casa de Espelhos ou o coelho que guia Adelaide ao submundo. O roteiro se sai melhor ao estabelecer a duplicidade, em vários sentidos, da(s) personagem(ns) de Lupita Nyong'o, que não se sente à vontade na própria pele, percepção que culmina em um confronto memorável, oscilando entre a dança (um Pas de Deux evidentemente) e a luta.

O terror, assim, como a ficção-científica, dois gêneros cinematográficos considerados menores por muita gente gabaritada, ampliam a percepção sobre si e o mundo a que eles figurativamente se referem quando seus monstros e alienígenas traduzem uma sensação coletiva (e contemporânea) de angústia social e existencial. Com Nós, Jordan Peele expressa a ideia de que somos sempre o outro de alguém, que assim como Gabe queria ter o iate do vizinho, Abraham, seu duplo, queria os óculos dele para poder melhor ver este mundo da superfície. Paradoxalmente, a verdade dos fatos indica que, ao fim e ao cabo, não há realmente diferença. Afinal não somos todos, em nossa face monstruosa, humanos em demasia?
Cotação: ★★★★
