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  • Lourenço Becco

Capitã Marvel | de Anna Boden e Ryan Fleck


Filmes de super-heróis têm sido o maior subgênero cinematográfico da Indústria na última década, assim como o Marvel Studios, com seu Universo Compartilhado, é o titã desta tendência com filmes que não raro chegam a ultrapassar a casa do bilhão de dólares em bilheteria. Assim sendo, a maior omissão do estúdio era o fato de que nenhum dos seus 20 filmes tinha uma mulher como protagonista. Após o sucesso de crítica e público que a Distinta Concorrência conseguiu com Mulher-Maravilha (2017), o estúdio de Kevin Feige se apressou em colocar nas telas um projeto há muito acalentado pelos fãs: um filme da Capitã Marvel, personagem menos popular que a Amazona, mas que tem alcançado um status importante de representatividade feminina no mercado de quadrinhos. Capitã Marvel (2019), portanto, se encontra em um impasse por ser uma obra de temática importante e contemporânea, mas estar atado a um conceito e modelo já cansados: o filme de origem e a Fórmula Marvel, saindo-se bem melhor no primeiro do que nos últimos.

No começo do filme, Carol Danvers (Brie Larson) é desafiada a ser “a melhor versão de si mesma”, uma indireta ao fato de que a personagem já teve muitas versões nos quadrinhos. Derivada de um personagem masculino homônimo, Danvers só foi se tornar heroína quase uma década depois de surgir como o interesse romântico do Capitão Marvel original. Chamada de Ms. Marvel (referência à revista feminina Ms, editada pela ativista Goria Steinem), Denvers usava um uniforme que mais parecia um maiô que deixava sua barriga aparecendo, mostrando que o feminismo da Marvel esbarrava no tamanho do collant. De lá pra cá, a personagem já teve vários títulos, nomes e encarnações, só ganhando a patente de capitão na série de 2012, escrita por Kelly Sue DeConnick (que pode ser vista rapidamente na cena do metrô). A autora renovou a personagem com um novo uniforme, motivação e desafios, tornando o título aclamado por crítica e público (de ambos os sexos). É esta, a melhor versão da personagem, que a Marvel decidiu levar ao cinema.



Carol Devers, no início de sua jornada, não é Carol Denvers. Carol Danvers nunca ouviu falar de Carol Denvers. Carol Denvers não sabe, enfim, quem ela realmente é. Membro de uma força-tarefa militar do Planeta Kree, ela tem sonhos e lampejos de uma vida pregressa que a assombram e um objetivo expresso que a motiva: vencer a batalha contra os Skrulls, raça metamorfa adversária. Para tanto, ela precisa não ganhar poderes, mas controlar o que já possui, sendo comanda por Yon-Rogg (Jude Law). A jovem está arraigada a uma sociedade patriarcal e militarista, o que se percebe tanto pelo jargão e postura que ela adota, quanto pelo ambiente em que vive. Mesmo sendo dona de uma personalidade bélica (“Vamos lutar?”, diz ela sorrindo), Carol é sempre censurada e questionada por seu superior na cadeia de comando, como fica patente em uma cena de treinamento marcial que graficamente explicita o conceito de “mansplaining”: o homem, de pé, imobiliza a mulher, de joelhos, e a convence a não usar, contra ele, o poder que dela emana.


Quando a narrativa chega ao planeta Terra (ou planeta C53, "um chiqueiro" segundo alguns alienígenas), o filme apela para a nostalgia dos anos 90, assim como os Guardiões da Galáxia fizeram com a década anterior, mas não de forma tão orgânica. Então há muitas referências à música (Nirvana, No Doubt, Garbage), ao cinema (True Lies, MiB, Os Eleitos e Barrados no Shopping), à memorabília (fliperamas e lancheiras) e à jurássica internet da época. No entanto, nada disso é essencial à trama, como ocorria no primeiro filme dos Guardiões, talvez excetuando-se todo o clima de Top Gun de algumas sequências, incluindo o nome do adorável gato da protagonista. Aliás, muitos segmentos do filme, como uma perseguição de carros, são fotografados como um filme da época, além da divertida dinâmica de buddy cops que logo se estabelece entre Carol e o jovem Nick Fury (Samuel L. Jackson), muito carismático no papel de alívio cômico. Aliás, algumas facilitações e coincidências narrativas, como o fato de Carol saber pilotar um modelo de jato que ela nunca viu, também lembram os roteiros oitentistas, mas, se isso é proposital, não há como dizer.



Capitã Marvel, em sua estrutura, tenta se afastar da Fórmula Marvel, ao iniciar o longa com uma personagem que já tem poderes e revelar o passado dela em flashbacks, utilizando o recurso da heroína desmemoriada (ei, funcionou com o Jason Bourne). No entanto, à parte disso, muito pouco do roteiro de Geneva Robertson-Dworet com os diretores Anna Boden e Ryan Fleck é autêntico ou empolgante. Muita exposição, algumas piadas recorrentes (como a do olho do Nick Fury) e desenvolvimento de personagem feito mais pelo que é dito do que pelo que é realmente mostrado (como a amizade de Carol e Monica), além de uma ou outra frase-feita ("Eu sou só humana!") destoam das boas ideias e intenções da história. A jornada do herói também é prejudicada pelo fato de que, no terceiro ato, a protagonista fica poderosa demais, e nada parece ser um desafio para ela. Faz falta uma cena de afirmação da personagem, que sumarize e valide seus ideais e personalidade, como aquela já memorável sequência da Mulher-Maravilha na Terra de Ninguém. Ao invés disso, há lutas muito editadas e pouco inspiradas em sua montagem ou sequências em que o modelo digital toma conta da tela, fazendo atos extraordinários que, porém, não impressionam.


No entanto, o que faz com que o escopo deste filme se eleve mais do que o de ser um degrau para a chegada de Vingadores - Ultimato (2019) é o seu propósito de apresentar uma heroína que não deva nada a homem nenhum e inspire meninas e mulheres ao empoderamento e à luta constante pela manutenção de seus direitos. Malgrado suas falhas, o filme atinge com primor esse objetivo. Carol Denvers não tem um interesse romântico, subverte uma situação de enfraquecimento hierárquico masculino para uma de delegação de poder feminino e, por fim, toma as decisões que impulsionam a narrativa, negando o papel de donzela que só reage aos acontecimentos e precisa ser salva. A metáfora da queda e da elevação, embora já tenha sido muito usada inclusive em filmes de super-heróis (vide Batman Begins, 2005), aqui é engrandecida pela montagem, que intercala vários momentos da vida de uma mulher que se fez por si mesma. A superação é, portanto, vista e não narrada. "Eu não tenho nada a provar pra você", diz Carol Denvers a quem duvidava de seu potencial, e o sentido dessa frase não se perderá para toda uma geração de meninas, que crescerão com essa certeza, e de mulheres, que nunca duvidaram dela.


Cotação: ★★★ PS: Arte da segunda imagem por Alex Ross. PS2: Não há necessidade de ver em 3D, só deixa a imagem escura e opaca. PS3: Há duas cenas pós-créditos como de costume.

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