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  • Lourenço Becco

Um Lugar Silencioso | de John Krasinski

Temor e júbilo. Som e silêncio. A vida da família Abbott se equilibra entre esses dois extremos desde que, 89 dias antes, algo se abateu sobre o planeta Terra e dizimou rapidamente boa parte de sua população. Algo que é atraído por qualquer ruído e que mata sem piedade ou explicação. Um Lugar Silencioso, terceiro longa do ator, roteirista e diretor John Krasinski abre com um plano de um semáforo caído em meio à rua principal de uma cidade desolada, cuja luz vermelha, simbolizando o perigo e a morte, vai ser retomada na narrativa como aviso da aproximação da ameaça desconhecida. O ambiente desolador lembra o de outros filmes que se passam em futuros pós-apocalípticos, com a diferença de que Krasinski opta por colocar a câmera ao nível do chão para, nas cenas iniciais, explicitar o ponto de vista dos três filhos do casal, vivido pelo próprio Krasinski e sua esposa, Emily Blunt. Embora a hecatombe tenha sido global, é este núcleo familiar que vamos acompanhar e com quem vamos nos preocupar durante a projeção. Mais uma decisão acertada do roteiro (escrito por Krasinski, Scott Beck e Bryan Woods), já que, quanto menor o escopo, maior o investimento emocional e, portanto, a tensão constante por parte da plateia em favor daqueles personagens, algo essencial para qualquer thriller. É por esta razão que o prólogo do filme (que dura cerca de 10 minutos) é tão eficiente e devastador.

O restante da narrativa se passa 383 dias após o prólogo. O silêncio opressivo, que, com o passar do tempo, se torna familiar a princípio e, depois, quase reconfortante, tem seu paralelo na economia da linguagem e de exposição, já que a narrativa é construída visualmente (afinal, cinema é isso) sem qualquer auxílio de incongruentes diálogos expositivos. Descobrimos que a filha mais velha do casal é surda ao vermos seu aparelho auditivo enquanto ela caminha, desconfiamos do motivo do silêncio com a manchete de um jornal que diz "É O SOM!" e percebemos o quanto eles sabem sobre seus antagonistas quando a câmera focaliza uma lousa no porão de sua casa. Já que a construção de sentido deste universo se faz mais pelo que é mostrado em cena do que pelo que é efetivamente explicado, o trabalho da direção de arte de Jeffrey Beecroft é fundamental ao estabelecer, através dos objetos em cena, as adaptações feitas para que se viva com o mínimo de ruído possível. As refeições são feitas no chão, sem talheres, em folhas. Já as crianças se contentam com jogos de tabuleiros com peças feitas de pano. Animais de estimação (se é que algum sobreviveu) e qualquer tipo de arte que envolva som (música, dança, cinema...) estão descartados. Além disso, os deslocamentos são todos feitos sem calçados em uma trilha de areia branca, que, pelo contraste, sinaliza uma área de aparente segurança.

Com efeito, aqui o modo minucioso como a nova rotina da família é aos poucos reveladadesempenha uma dupla função: prepara o público para o momento em que algo fora do normal surja, estabelecendo as regras do lar, e humaniza os personagens, fazendo com que tenhamos empatia por eles. É comovente, por exemplo, o momento em que o casal, compartilhando um fone de ouvido auricular, dança ao som de uma música ou como a família se dá as mãos para orar diante da refeição, mesmo sem proferir palavra alguma. Neste contexto, toda a comunicação é feita pela linguagem americana de sinais (ASL) ou por meios mais primitivos, como o código morse e o fogo acendido sempre a uma determinada hora para que se saiba que as famílias ao redor (que não vemos) ainda estão vivas. Logo, não é de se admirar que o som ambiente do filme e sua mixagem, a cargo de Erik Aadahl e Michael Barosky, sejam complexos por que, no silêncio, os efeitos sonoros se tornam muito ressaltados. Inclusive, há tons diferentes de silêncio no filme, já que a falta de som subjetivo de Regan, que é deficiente auditiva, é mais "alta" do que a que percebemos quando o filme acompanha outros personagens. Este contraste também é demonstrado visualmente na bela cena que se segue ao prólogo, em que a menina é filmada de ponta cabeça, com uma luminosa camisa amarela, deitada sobre uma imensidão de areia branca. A trilha, porém, apesar de esparsa, se avoluma muito em pontos específicos para garantir o jump scare, o que é desnecessário dada a tensão já construída.



Ao anoitecer, as sombras convertem-se em espaços de incerteza, e os tons quentes da matina dão lugar ao bruxuleante das velas e lampiões, uma transição muito bem capturada pela fotógrafa polonesa Charlotte Bruus Christensen, que ilumina com igual eficiência tanto as locações exteriores, como a densa floresta e a plantação de milho, quanto as interiores, como o sótão e o banheiro, além de fileiras das já mencionadas lâmpadas vermelhas, praticamente uma sirene de emergência visual. Todo este apuro visual e sonoro seria ineficiente, no entanto, se não houvesse uma dedicação extrema dos intérpretes dos pais para ressaltar a responsabilidade de que ambos se veem imbuídos de, como diz a mãe, proteger os filhos a qualquer custo. O personagem de Krasinski mantém, mesmo quando aparenta estar relaxado, uma vigilância e uma tensão que não descansam. Emily Blunt, por sua vez, em uma performance notável, manifesta uma grande força e rapidez de raciocínio em situações desesperadoras no angustiante ato final, sem criar uma heroína invulnerável, pois sua emoção está sempre visível e impacta o espectador, especialmente nas duas cenas em que ela grita, sendo que, na primeira, ela só usa as mãos para fazê-lo, o que torna tudo mais desesperador. A negação de um instinto tão primitivo e humano quanto o de gritar, seja de dor, susto ou alegria, é uma das coisas mais atemorizantes na situação da qual aquelas pessoas se veem reféns.


Demonstrando um domínio agudo de como manter a tensão e o interesse da plateia, John Krasisnski vai além do susto fácil, utilizando recursos como a montagem paralela e várias pistas que têm sua recompensa garantida na construção da trama. Se, como diz Tchékhov, uma espingarda no primeiro ato tem que ser disparada no terceiro, um prego em um degrau só pode ter um propósito. Essa estrutura deixa algumas resoluções um tanto previsíveis pra quem conhece bem a convenção do gênero, mas a construção do suspense pela montagem e mixagem de som, aliadas à direção precisa, mais do que compensam esse fato. Um Lugar Silencioso não é um filme original nem revolucionário, mas é uma obra que, muito ciente de seus pontos fortes, propicia uma intensa experiência emocional, que não desdenha da inteligência do seu público ao mesmo tempo em que consegue um dos seus maiores feitos: deixá-lo em silêncio durante uma hora e vinte minutos.

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