
Em meio à nova onda de protagonismo feminino no cinema hollywoodiano (que tenha vindo pra ficar), as mulheres conquistaram o papel central em filmes de super-heróis, ação, terror e comédia. Maria Madalena (2018), segundo longa do diretor Garth Davis, intenta fazer o mesmo com um gênero eminentemente masculino, o épico bíblico. Estrelado por Rooney Mara, que já havia trabalhado com o diretor em seu longa de estreia, Lion (2016), o filme narra a história da personagem-título, uma mulher desassossegada com o papel escolhido para si, que vê tanto um sentido maior quanto uma oportunidade de escapar da sina familiar quando Jesus Cristo (Joaquin Phoenix) e seus apóstolos passam a pregar em seu vilarejo, o que ocasiona um paradoxo na narrativa, pois ela ganha escopo na mesma medida em que Madalena perde seu protagonismo, o que não deveria acontecer.
Iniciando sua narrativa com Maria Madalena mergulhada em um oceano sem limites, o filme, neste enquadramento, já estabelece tanto o desajuste que ela sente em sua vida quanto a metáfora da água como uma analogia do batismo e, por consequência, do Reino de Deus. Sempre cercada de figuras masculinas e autoritárias, a protagonista tenta se desvencilhar de suas obrigações familiares, mesmo não querendo o mesmo para as religiosas, já que revela uma vocação clara para a missão espiritual. O diretor é bastante eficiente em estabelecer esta vida pregressa de Madalena, contando para isso com as belíssimas locações da Itália (se passando bem por Oriente Médio) sempre filmadas com apuro com lentes grandes angulares e panorâmicas, o que contrasta com o modo confinado como enquadra a personagem-título. A autenticidade do lugar também é ressaltada na direção de arte de Fiona Crombie, sendo quase franciscana em sua simplicidade e economia de adereços, na fotografia de Graig Fraser, utilizando a luz natural e a de velas, e no figurino de Jacqueline Durran, indo na direção oposta do seu trabalho oscarizado em Anna Kariênina (ver crítica no site) ao construir roupas artesanais, que parecem mesmo ter sido costuradas pelas mãos daquelas mulheres.
A alegoria da água é mais uma vez retomada pelo roteiro de Helen Edmundson e Philippa Goslett (mais presença feminina também atrás das câmeras) na profissão de Maria, uma das que tecem as redes dos pescadores, e em sua punição por se opor às convenções, um tipo de exorcismo através do afogamento perpetrado por seu próprio irmão. É neste ponto da narrativa que conhecemos o Jesus de Joaquin Phoenix. Em uma cena que lembra uma sessão de terapia, Jesus conversa com uma Madalena deitada sob o peso de sua própria inadequação e a conforta com um sorriso e a garantia de que não há demônios em seu corpo. Tanto ela quanto o espectador ficam fascinados com aquela visão tão humana de Cristo. Phoenix, um ator extraordinário, opta por criar mais um homem do que um messias, com uma voz baixa, modulada, que só se alteia em certos momentos de sua pregação, como quando exorta contra o comodismo dos homens ou destroça o templo em uma das melhores cenas do filme. Na maior parte do tempo, ele é um homem ciente de seu destino e missão, mas ainda da alegria de estar vivo, contraste percebido em seu olhar enrugado (Joaquin tem 10 anos a mais que o personagem) e em seu sorriso.
Além de Cristo, há duas figuras masculinas que contracenam com Madalena: Judas e Pedro, já que os outros apóstolos não passam de figurantes. O primeiro (interpretado por Tahar Rahim) é um devoto meio alienado que busca conforto para uma tragédia pessoal criada pelas roteiristas a fim de dar alguma profundidade ao personagem. Já o Pedro de Chiwetel Ejiwofor serve quase como antagonista de Madalena, sempre pronto a se irritar com sua aproximação de Jesus e com seu gênero também. Há uma sequência em que Pedro e Madalena confortam os sobreviventes desnutridos de um lugarejo atacado pelo exército romano (como sutil crítica a outro exército de outra nação poderosa de nossa época), em que ela tem seu mérito reconhecido. Aliás, Madalena ocupa o centro da cena com um papel ativo, além desta cena, somente quando prega e batiza outras mulheres (subvertendo a cena do exorcismo na água, que agora purifica).
A partir daí o filme se torna bastante familiar para quem já viu essa história contada em dezenas de outras ocasiões: quase um checklist de eventos do Novo Testamento. Algumas releituras destas narrativas acrescentam algo novo, como a ressurreição de Lázaro, em que o desenho de som de Robert Mackenzie acentua o volume de uma respiração sendo sobrepujada pelo de outra. Na maior parte, entretanto, é tudo filmado com competência, mas sem inspiração. À Madalena cabe o papel de ouvir e confortar Cristo, além de sofrer por sua sina. Em certo momento, ele a intitula como "minha testemunha", o que ela passa a ser infelizmente. Após a ressurreição (spoiler alert), as roteiristas ainda tentam colocá-la em conflito com os outros apóstolos na fundação de uma igreja mais espiritual e, por que não, feminina, mas não há ímpeto na narrativa. Talvez se ela tivesse se iniciado neste ponto e mostrasse como Madalena fundou uma igreja mais humana, o enredo seria menos familiar e mais interessante. É uma lástima, desse modo, que um filme que deveria ter Maria Madalena como protagonista a coloca, na maior parte da projeção, seguindo um homem, mesmo que divino e fascinante, e não seus próprios passos.
PS: este foi o último filme do compositor Jóhann Jóhannsson, falecido em fevereiro último.