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  • Lourenço Becco

Três Anúncios Para Um Crime | de Martin McDonagh


Três Anúncios Para Um Crime não é um filme sobre vingança, equidade ou até mesmo justiça. É um filme sobre ódio. Todos os personagens importantes do filme, com maior ou menor intensidade, têm momentos de erupção de uma raiva que sempre falha em ser contida. Parece ser este o modo que aquela população escolheu para lidar com a vida sem perspectiva, em uma cidadezinha preconceituosa, atrasada e mexeriqueira do Missouri. Adjetivos que também qualificam esta mesma população, em uma relação cíclica na qual não se sabe o que veio primeiro. A injustiça, do mesmo modo, advém de uma falta profunda de horizonte, lógica ou entidade superior que justifiquem o caos aleatório da existência. Embora possa parecer o contrário, não há redenção possível aqui.


Mildred (Frances McDormand), nome que significa "força gentil", é uma mulher marcada pela violência. Espancada pelo ex-marido, depois do divórcio, teve sua filha sequestrada, estuprada e carbonizada. Há um traço de violência, inclusive, em como ela fala, mesmo em tom de brincadeira, com o filho Robbie (Lucas Hedges, único elo fraco do ótimo elenco). Sempre vestida com um macacão surrado, usa o cabelo preso e um lenço sobre a testa que acaba por ressaltar as pesadas linhas de expressão de sua fisionomia, quase sempre fechada ou com um sorriso sardônico. Destemida, Mildred é prática em como resolve seus problemas, sempre afrontando seus adversários, como uma maneira, talvez, de não se mostrar tão fragilizada pelo crime que lhe destroçou a vida. Os animais parecem ser os únicos capazes de lhe despertar empatia, como visto em duas cenas: uma na qual ajuda um besouro invertido a se pôr de pé, e outra, absolutamente tocante, em que ela conversa com um cervo, pela qual Frances McDormand merece todas as premiações do ano. A atriz concilia a força da personagem com uma fragilidade subjacente, que, quando irrompe em fúria, causa um misto de empatia e horror a quem assiste. Não há como desviar o olhar dela em cena.


Um roteiro bom é aquele que mostra como os personagens são através de suas ações, não aquele que nos diz isso. Neste aspecto, o escrito pelo diretor Martin McDonagh deveria ser estudado por que, em exatos 10 minutos, ele apresenta a protagonista, o conflito central da trama, seus antagonistas e, boom, estamos dentro do filme, prontos para sermos surpreendidos. Ao passar por 3 outdoors abandonados, Mildred tem uma ideia e a põe em ação: estampar neles frases cobrando da apática polícia local resultados na investigação do assassinato de sua filha. Após a instalação feita, o preconceituoso oficial Jenkins (Sam Rockwell), banhado pelo vermelho scorsesiano dos anúncios, avisa o delegado Wylloughby (Woody Harrelson) sobre o fato. Em três cenas, McDonagh nos apresenta a determinação de Mildred (no diálogo com o dono da agência), o racismo de Dixon (no diálogo com os cartazistas) e o carinho pela família de Willoughby (no seu diálogo com Dixon). Isso tudo sem falas expositivas, somente estabelecendo a premissa do filme. Ainda assim, há uma sensação, por parte do espectador, de familiaridade, de que, no fim das contas, ele sabe o que acontecerá e o que farão estes 3 personagens. Não poderia estar mais enganado.


Os estereótipos começam a ser rompidos com a figura do xerife Willoughby. Um roteiro mais preguiçoso o colocaria como o antagonista a ser odiado, um tira fanfarrão, preguiçoso e comedor de rosquinhas. Não é o caso. Embora estejamos envolvidos na busca de Mildred Hayes, percebemos que o xerife é um homem justo, um profissional que inspira seus pares e, principalmente, um dedicado marido e pai de família, mas que não é exemplar, como sugerem as obscenidades que profere em plena ceia de Páscoa. Ainda assim, ele não consegue resolver o crime hediondo que abalou sua comunidade. Esse equilíbrio seria difícil de atingir sem o carisma e a autenticidade da interpretação de Woody Harrelson, que sustenta bem os aspectos profissional e familiar deste homem ao lidar também com seu próprio dilema.


Completando a tríade (e elas estão em todo o filme), Sam Rockwell constrói um personagem repulsivo, patético e, ao mesmo tempo, intrigante, flertando com a caricatura, mas sem resvalar nela completamente. Seu oficial Dixon é um exemplo de “white trash”, do americano caipira e ignorante, que, arraigado em seus preconceitos, acha que substituir “crioulo” por “pessoa de cor” é o suficiente pra aplacar o racismo quando discute a prática de tortura que ele mesmo promove em sua delegacia. Um homem adulto que ainda vive sob a asa da mãe retrógrada (gaguejando sempre que alguém alude a isso), carente de uma figura paterna (idealizada na imagem do xerife), Dixon acredita se comportar como os heróis dos gibis que lê, mesmo compensando sua falta de inteligência com brutalidade e consumo de álcool. Aliás, essa ira explode em um dos momentos mais insólitos do filme: um plano sequência extraordinário, um crescendo de tensão a cada passo dado pelo personagem em direção a sua visão distorcida de justiça. Uma pancada de deixar sem fôlego.


A interação entre estes 3 personagens vai criando, em uma gradação exasperadora, uma série de acontecimentos, de ações e reações cada vez maiores, que acabam por atingir várias pessoas e eles mesmos de maneira definitiva. À medida que toda esta voltagem dramática começa a parecer absurda, mais inevitável ela se torna. É admirável, portanto, que o roteiro, repleto destes momentos de tensão, quebre, ou melhor, complemente esse sentimento de inquietude com porções de humor negro e ironia. McDormand, já mais do que familiar com o humor esdrúxulo dos Irmãos Coen, tira de letra cenas do mesmo calibre aqui. Se você já sofreu na cadeira de um dentista, vai se sentir completamente vingado.


Esta atmosfera neowestern sulista, ressaltada pela invocativa trilha de Carter Burwell, parece sugerir uma catarse heroica ou uma rendição anunciada, caminhando em direção ao pôr do sol no horizonte. Sem entrar no território dos spoilers (ou este texto dobraria de tamanho), embora haja uma cena que sinalize um perdão do ofendido a seu agressor, ela diz mais da compreensão do primeiro do que da evolução do segundo. Além disso, fica claro que um passo na direção certa não apaga uma corrente inteira de mal-feitos. Na verdade, embora os personagens busquem justiça, só conseguem canalizar seu ódio e frustração através da violência. Ironicamente é a mais caricata das personagens que demonstra um pouco de razão quando diz que o ódio só suscita ainda mais ódio. A estrada, iniciada ao pé daqueles anúncios onde o corpo de Angela Hayes foi encontrado, ainda continua aberta a uma resolução, talvez justa, talvez não, para quem se arrisca a trilhá-la.

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