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  • Lourenço Becco

Pantera Negra | de Ryan Coogler


Alguns filmes, além de serem julgados por seus méritos, devem ser vistos à luz do que eles representam no contexto em que foram produzidos e exibidos. Pantera Negra (2018), novo empreendimento do Marvel Studios, dirigido por Ryan Coogler, é um exemplo disso. Coogler, em seu terceiro longa, consegue dar continuidade temática a seu consistente corpo de trabalho, mesmo em gêneros tão diversos (docudrama, filme de boxing e filme de herói), e ainda criar uma obra socialmente relevante e inspiradora para toda uma geração de afrodescendentes ao redor do globo. Mais ou menos o equivalente ao que Patty Jenkins alcançou com Mulher-Maravilha (2017) para o público feminino. Tudo isso, renovando a já mais do que familiar Fórmula Marvel em um filme que é entretenimento do melhor quilate sem ser panfletário. Não é tarefa simples.

Considerado o primeiro super-herói negro, o Pantera Negra surgiu antes mesmo do grupo revolucionário com quem compartilha o nome, em uma sacada sem precedentes de Jack Kirby e Stan Lee em 1966. O personagem, que já teve vários títulos na editora ao longo das décadas, foi apresentado ao público em Guerra Civil (2016), dos irmãos Russo, o filme anterior desta terceira fase da Marvel no cinema. E que apresentação! Roubando todas as cenas em que aparece, o soberano do fictício país africano, Wakanda, foi o destaque do filme (ao lado do Amigão da Vizinhança) com seu uniforme arrojado e agilidade surpreendente. É claro que Kevin Feige, manda-chuva do mais lucrativo estúdio do mais lucrativo gênero da década, já tinha a intenção de iniciar uma franquia cinematográfica do herói.

Após a morte de seu pai (John Kani), T’challa (Chadwick Bosman) se prepara para assumir o trono enquanto enfrenta a ameaça do Garra Sônica (Andy Serkins) e um novo oponente, Killmonger (Michael B. Jordan) com a ajuda da guerreira Okoye (Danai Gurira), da espiã Nakia (Lupita Nyong’o) e de sua irmã Shuri (Letitia Wright). A partir desta premissa simples e familiar ao mundo dos heróis, o roteiro de Ryan Coogler e Joe Robert Cole constrói uma aventura com toques de James Bond e de intrigas palacianas sem esquecer as origens revolucionárias do material fonte. A contextualização sobre Wakanda e as origens do(s) Pantera(s) Negra(s) é feita por meio de uma animação expositiva bem parecida com a de Thor: Mundo Sombrio (2013), mas, tirado isso do caminho, Coogler nos leva a um conjunto habitacional pobre da sua Oakland natal, cenário de seu primeiro filme, Fruitvale Station (2013), e revela sua intenção subjacente: inverter o ponto de vista do que normalmente se percebe como super-herói americano no cinema, ao tratar as relações entre uma família e uma nação.

A característica mais marcante do longa é justamente a referência cultural (mesmo que estilizada) à cultura negra africana, o que dá um frescor bem-vindo à estética insípida dos filmes da Marvel. Dos letreiros bilíngues à nave em forma de máscara tribal, é tudo muito mais intenso, colorido e estimulante. A fotografia de Rachel Morrison (indicada ao Oscar este ano por Mudbound) faz uso de cores quentes e vibrantes, o que se aproxima do trabalho estupendo da figurinista Ruth E. Carter, que selecionou uma tom específico para cada tribo de Wakanda e criou os uniformes de guerra e os trajes reais com muita soberania e representatividade em seus motivos africanos. Para coroar este time de guerreiras, é notável o trabalho da direção de arte de Hannah Bleacher, criando uma unidade visual que se estende do laboratório mais avançado à rua do mercado. A trilha de Kendrik Lamar e Ludwig Goransson, ao mesclar música urbana negra a sons tribais, completa este time que Coogler fez questão de trazer com ele de seus filmes anteriores.


No entanto, a questão racial do filme não se limita ao aspecto visual, ela está sempre presente, do elenco (que só tem dois personagens brancos relevantes) ao tom dos diálogos. É significativo que os wakandanos se refiram ao personagem do Martin Freeman (totalmente dispensável na trama) como colonizador e que eles achem armas de fogo algo primitivo, numa clara inversão de valores. Em certo momento, um personagem chega a dizer que é preferível a morte às correntes de um navio negreiro (e quem diz isso vai surpreender muita gente). O orgulho da raça e a noção de colonialismo não são estranhas aos personagens e seus conflitos. Não poupando nem a política internacional de imigração de Trump, Pantera Negra se firma como o mais político dos filmes do Marvel Studios.


Não que isso frustre o espectador casual que vai ao cinema em busca de grandiosas cenas de ação. Em uma sequência em clima de James Bond, que só é reforçado pelo fato de o Pantera ter seu próprio Q na figura da irmã Shuri, os personagens, em meios a tiros, golpes e saltos fantásticos, destroem um cassino clandestino na Coreia do Sul. Coogler, demonstrando o virtuosismo já visto em Creed (2015), constrói uma cena de ação, envolvendo os personagens de Bosman, Nyong’o, Serkins, Freeman e Gurira, em um plano longo (não se trata de plano-sequência, pois não muda o lugar nem o tempo), que envolve deslocamento de eixo da câmera em dois níveis do cenário. A cena de perseguição que se segue, feita em locação, também é enérgica e eficaz. Se o público não estava empolgado até ali, impossível não ficar. A equipe de coreógrafos de ação se sobressai ainda nos confrontos um a um, em especial nos que se passam em uma cachoeira, que só distraem em função de o cenário virtual ser muito evidente. Aliás, o CG do filme é problemático também no confronto final, em que os personagens digitais são muito plásticos e leves, quebrando a ilusão do combate. Além disso, a percepção da cena, em um ambiente escuro com dois personagens vestidos de preto, fica ainda mais prejudicada se o filme for visto no (quase sempre dispensável) 3D.


O diretor se mostra mais inspirado, contudo, em sua seleção de elenco. Chadwick Bosman continua aliando a majestade de T’Challa ao seu carisma na construção de um protagonista nada menos que heróico, que tem a fortuna de estar cercado de mulheres incríveis: Lupita Nyong’o (pelo fascínio), Letitia Wright (pela graça) e Danai Guria (pela fúria), juntamente com o exército real de Dora Milaje (uma versão africana das Amazonas), sedimentam a tendência de apresentar mulheres vigorosas e insubmissas, que não querem nem precisam ser salvas por ninguém. Completando o elenco feminino, temos a veterana Angela Bassett (se redimindo de sua atuação no horrível Lanterna Verde de 2011) como a mãe do herói.

Já o parceiro habitual de Coogler, Michael B. Jordan (se redimindo de sua atuação no horrível Quarteto Fantástico de 2015), concebe algo de que o Universo Marvel estava carente há muito tempo: um vilão complexo, crível e verdadeiramente ameaçador. As motivações de Erik Killmonger são tão convincentes e tangíveis que é difícil, apesar de seus métodos violentos, não se perguntar se ele está certo em enxergar o mundo daquele modo considerando tudo que ele (e seu povo) sofreu. Killmonger é inteligente, forte e tem uma presença imponente que chega a rivalizar com a do próprio Pantera Negra. A imagem vangloriosa que tem de si e de sua missão estão simbolizadas tanto em suas inúmeras marcas tribais ritualísticas quanto no colar dourado que escolhe para si. O diretor faz questão de estabelecer o quanto sua presença é subversiva ao inverter o eixo da câmera em 180 graus no momento em que ele pisa na sala do trono. Nada será o mesmo com sua presença, pois as questões que traz consigo são urgentes e espinhosas.


A partir daí, T’challa, que já havia se perguntado se basta ser um bom homem para ser um bom rei, passa a se questionar quem é na verdade o seu povo (e, por extensão, sua raça) e o que pode e deve ser feito para estender-lhe a mão, mesmo que isso exija a autonomia do país que lhe cabe governar. Este impasse levantado pelo roteiro é mais vital para a história do que as conhecidas batidas do filme de super-herói e torna esta nova incursão no Universo Cinematográfico da Marvel uma coisa própria, sem depender de piadas excessivas, referências e conexões com os próximos capítulos do cenário maior. O que importa é que T’challa deve descobrir quem ele é para fazer sua decisão. De um modo ou outro, o Pantera Negra vive. Vida longa ao Rei!

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