
Tolstói abre sua obra-prima, "Anna Kariênina", afirmando que todas as famílias felizes se parecem; mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira. A infelicidade devastadora do menino Alyosha é mostrada sem nenhum atenuante em "Sem Amor", do diretor Andrey Zvyagintsev, responsável pelo vencedor moral do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2015, o igualmente impactante "Leviathan". Zvyagintsev narra um drama familiar para discorrer sobre a situação ímpar da Rússia, pois, em sua visão, os países também são malfadados cada uma a seu modo. Em especial, a Rússia, que, do Império Czarista à Revolução de Outubro, de Chernóbyl à Perestroyka, tem cicatrizes bem particulares a mostrar.

Abrindo o longa com belas e devastadoras imagens de um lago cercado de árvores secas e neve no inverno russo acompanhadas de acordes dissonantes de piano, Zvyagintsev dá o tom da narrativa: lenta e incômoda, mas fascinante em sua solitude. A partir daí, acompanhamos o menino Alyosha, ao andar por esta mesma paisagem durante o verão escolar, após sair da escola, que ostenta uma bandeira russa em seu pórtico.

Extremamente solitário, (“Ele só tem um amigo”, dizem em certo momento), o garoto é ainda atormentado pelo divórcio litigioso dos pais. A dor na composição de Matvey Novikov é comovente na medida em que as palavras não são necessárias para expressá-la. Exemplo disso é a avassaladora cena em que, escondido, ele ouve os pais discutirem qual será seu destino após o divórcio consumado.

Os pais de Alyosha vivem da imagem que projetam. Boris (Aleksey Rozin) trabalha em uma grande corporação, que, gerenciada por uma família da Igreja Ortodoxa Russa, não permite que seus funcionários se divorciem ou não tenham filhos, primando pelo tradicionalismo. Maryana Spivak constrói sua Zhenya, dona de um salão de beleza, como uma mulher obcecada em ostentar uma imagem de sucesso e prazer, sempre checando em seu Iphone o perfil do próprio Instagram constantemente.

A interpretação da atriz é muito arriscada por que, durante o primeiro terço do filme, a personagem se mostra sempre irritada e ríspida, flertando com a antipatia do espectador. Mesmo assim, Spivak escapa do monocórdico e incorpora nas cenas indícios da complexidade daquela mulher ferida. O personagem de Rozin, entretanto, se caracteriza pela apatia e inação, traços também antipáticos, mas menos repulsivos que os da sua ex-esposa.

O roteiro, aliás, dedica um bom tempo do início do filme a esmiuçar a rotina dos dois, cheia de situações espelhadas, mas diversas. Trabalhos, sexo, os novos parceiros; tudo isso é mostrado em um tom quase documental, sem pressa, para que o espectador conheça essas duas pessoas para além da aparência que desejam exibir. Assim percebemos que, mesmo acompanhando o noticiário sempre que dirige, Boris tem pouca ou nenhuma empatia social.

Zhenya, por sua vez, vai mostrando sua fragilidade emocional, antecipada em na tomada belíssima em que ela está deitada nua da cintura pra baixo. É significativo o diálogo em que ela diz nunca ter amado ninguém na vida, a não ser a mãe que, por tratá-la de forma cruel, aniquila esse sentimento e a autoestima da filha, que se enxerga como um monstro repulsivo, inábil para a maternidade a ponto de não gerar leite.

O resultado dessa investigação emocional é que, quando o menino desaparece, nós percebemos o quão ausente ele estava não só do filme, mas da vida de seus pais. Nós sentimos a ausência, que é antecipada na composição de uma cadeira vazia. Impressiona, ainda, que a mãe só tenha notado o desaparecimento mais de um dia depois do ocorrido e que o pai não demonstre a emoção esperada quando é informado, se preocupando em manter o tom de voz baixo por estar no ambiente de trabalho. Outro reconhecimento é o dos motivos pelos quais Alyosha tomou esta decisão, pois agora conhecemos seus pais, pessoas que, mesmo com seu filho desaparecido, não têm vergonha de admitir que seria melhor se ele nunca tivesse nascido. A indiferença parece tão incômoda que, quando eles finalmente choram, o que há é alívio.


O diretor faz um trabalho quase documental em suas cenas, o que aumenta a sensação de voyeurismo, como quando situa a câmera no banco de trás do carro de Bóris, vislumbra Zhenya através de janelas ou quando deixa a câmera estática e distanciada na cena de sexo em seu apartamento.


Aliás, ele só parece optar pela steadicam e a grua quando segue os passos de Alyosha na floresta no início do longa, reforçando nossa identificação com ele. O olhar do menino também é demonstrado também por uma mudança de foco quando ele olha pela janela.


Outro momento inventivo se dá quando o diretor usa uma câmera subjetiva que interage com uma personagem e, ao mudar de cômodo, sem corte, ela passa a ser objetiva, acompanhando um diálogo de forma convencional.

Já a paisagem é fotografada de forma a borrar as fronteiras entre a cidade e a floresta, entre o civilizado e o insondável, que se vê na tomada que focaliza uma gigantesca antena entre galhos secos.

No entanto, as ambições temáticas de Andrey Zvyagintsev ultrapassam o âmbito familiar. Assim como em "Leviathan", o diretor cria uma alegoria do seu próprio país. O contexto político da Rússia não é só referenciado nas notícias de rádio intercaladas durante o filme. A ríspida e solitária mãe de Zhenya, por exemplo, isolada em uma dasha escura e carcomida, com ícones pelas paredes, parece simbolizar a própria Mãe Rússia que deu à luz toda uma geração sem perspectivas de florescer.

Ainda há o contraste dos prédios abandonados (que remetem à desolação de Chernóbyl) e o apartamento vanguardista e asséptico do empresário que pode mandar a filha para fora do país.


Em uma de suas últimas cenas, por fim, o diretor perde um pouco a sutileza ao mostrar sua protagonista vestida com um abrigo da Rússia, correndo para permanecer no mesmo lugar.

"Sem Amor" não é um filme fácil ou condescendente, não entrega respostas nem resolve enigmas, mas incomoda e comove profundamente. Ao fim, persiste a figura de Alyosha, remetendo a uma longa tradição de crianças sofredoras na obra de outro proeminente escritor russo, Dostoiévski, que disse, certa vez que a proximidade das crianças é capaz de curar a alma. No entanto, o oposto também é verdadeiro: a alma de uma criança (ou de uma geração) pode se extinguir em um ambiente sem amor.