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  • Lourenço Becco

O Insulto | de Ziad Doueiri


Nos minutos iniciais de “O Insulto”, além dos créditos bilíngues, causa estranhamento ao leitor a presença de um letreiro indicando que os diferentes pontos de vista expressos no filme não representam o posicionamento oficial do governo, o que já dá o tom de conflagração ideológica do longa. Localizado na Ásia Ocidental, o pequeno país do Líbano tem uma rica história cultural, que advém da presença de vários povos em seu território. Esta concentração, por outro lado, também originou diversos conflitos religiosos e territoriais, como a não tão distante Guerra Civil Libanesa, que arrasou o país. A hostilidade entre cristãos libaneses e refugiados muçulmanos não cessou com o fim da guerra, e o diretor Ziad Doueiri revela como, por trás de aparentes desentendimentos domésticos, pode haver séculos de uma beligerante relação.


O filme se inicia mostrando como as crenças políticas e religiosas de Tony Hanna (Adel Karam) estão presentes no seu cotidiano. Após um comício do Partido Católico Libanês, vemos indícios de como religião e política são o mesmo a seus olhos: o terço no retrovisor do carro, a imagem da Virgem Maria e crucifixos em sua casa e a foto do líder do partido, emoldurada no banheiro (!) de sua casa e também na pequena oficina mecânica que possui para sustentar sua esposa grávida (Rita Hayek, numa interpretação intensa). Sua rotina é interrompida quando entra em conflito com o capataz libanês Yasser Salameh (Kamel El Basha) por causa de uma calha quebrada, que resulta em um xingamento, que converte-se um insulto grave, que motiva uma agressão física e, por fim, dá lugar a um tortuoso processo judicial.


O diretor é muito eficiente em construir a crescente tensão a cada acontecimento. O que poderia ser facilmente resolvido por um pedido de desculpas toma proporções potencialmente trágicas para a família dos dois homens, inflamando o ânimo de vários grupos radicais da sociedade e tendo a atenção de todo o país, que se vê refletido naquele conflito. A cada passo dado, os homens mais se distanciam de uma solução pacífica, aumentando a aflição do espectador. Muitas cenas são filmadas com a steadicam seguindo de perto os atores, por trás do ombro em um close insistente no rosto, mesmo nas cenas de tribunal. Rostos estes que merecem tanta atenção, pois tanto Karam quanto Basha constroem seus homens endurecidos pela expressão vigorosa, cujas linhas mapeiam o caminho de dor cravado na vida dos dois.


O roteiro não se abstém de apresentar as brutalidades de cada lado. Os palestinos são vistos como cidadãos de segunda categoria, tratados como “essa gente”. Em certo momento, Yasser chega a dizer “Nós somos o negro do mundo árabe!”, o que é chocante em mais de um sentido. Também é notável como, mesmo sendo católico fervoroso, Tony argumenta que não é Cristo, “para dar a outra face”. Em contrapartida, o modo como tanta humilhação explode em violência é mostrado tanto no comportamento de Yasser como na memória das atrocidades da Guerra Civil. Ainda há ocasião de mostrar a corrupção do sistema político e judiciário, mais um indício de que nós não somos tão diferentes deles.


Há duas cenas, uma sem diálogo e outra com apenas duas frases, que mostram a eficiência da montagem do filme. A primeira envolve o bem-estar de um bebê e é constituída de três imagens diferentes e pontuais que, por serem mostradas em uma certa ordem (o famoso Efeito Kuleshov), dispensa o uso de palavras e, por isso, emociona. A segunda, que não vou especificar aqui, é muito singela por afirmar, sem discurso nenhum, mas pela ação de prestar auxílio, que todas as desavenças poderiam ser deixadas para trás caso houvesse vontade e comprometimento.


Mesmo que o ritmo não canse e sempre mantenha o espectador interessado em seus desdobramentos, o filme tem mais cenas de tribunal do que deveria, e o terceiro ato poderia ter terminado sem a última delas, já que uma anterior já encerraria a narrativa de uma forma tanto simbólica quanto eficiente. Há também uma subtrama sobre os advogados de defesa e acusação que, além de um pequeno plot twist, não acrescenta muito à narrativa.


O Insulto é uma obra que fala de vários temas urgentes sem a necessidade de ser panfletário, e sim humano. E quanto mais humano é aliás, mais contumaz se mostra ao evidenciar que a liberdade de expressão não pode ser desculpa para o preconceito, que a violência intransigente não deve abafar a integridade e que o hábito do massacre não deve anestesiar nossa capacidade de compartilhar a dor do próximo, mesmo que gerações e séculos gritem o contrário.

PS: Para quem quiser saber mais sobre o Efeito Kuleshov, indico a leitura desta página: https://www.comunidadeculturaearte.com/efeito-kuleshov-e-a-importancia-do-ser-cinematografico/

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