top of page
  • Lourenço Becco

007 - Sem Tempo Para Morrer | de Cary Fukunaga



O tempo não poupa ninguém, nem mesmo os mais longevos ícones cinematográficos. Prova disso é James Bond - emblema da guerra fria, conquistador contumaz, modelo de masculinidade - que já vem mudando durante suas quase 6 décadas de existência cinematográfica, mas nada como o visto em 007 - Sem Tempo Para Morrer, 25º filme da franquia, o primeiro a ser dirigido por um americano e o último a ser estrelado por Daniel Craig. Ao assumir o posto de espião mais famoso do cinema há 15 anos, Craig tinha muito o que provar: após o fracasso o terceiro filme de Pierce Brosnan (o desastroso 007 – Um Novo Dia Para Morrer) e o realismo seco da franquia Jason Bourne, Bond parecia mais um fóssil destinado ao Museu da Academia. Além disso, aquele ator loiro, meio carrancudo, que só fora visto como coadjuvante, não agradou ao público nem à imprensa, que o condenaram antes mesmo de ver sua estreia. Estavam todos errados, já que 007 – Cassino Royale é um dos melhores filmes - se não o melhor - do personagem, muito graças ao trabalho irrepreensível de Craig. Após a fraca sequência (007 – Quantum of Solace), o Bond de Craig alcançou outro ponto alto em 007 – Operação Skyfall somente para dividir opiniões novamente com 007 Conta Spectre. Mais combalido, magro e contundido (seu joelho nunca será o mesmo), Daniel Craig tem como última missão manter a série significativa e fechar o arco de seu personagem de um jeito arriscado: humanizando-o.



O Bond de Craig, ao contrário dos seus antecessores, abandonou de vez a narrativa episódica e, no início deste 25º filme da franquia, vemos o agente secreto abandonando o serviço secreto de Sua Majestade para viver dias mais tranquilos ao lado de Madeleine Swann (Léa Seydoux) e, quem sabe, cogitar uma aposentadoria, quando a aparição inevitável do vilão Safin, um terrorista com planos macabros para a humanidade e uma conexão com o passado de Swann, faz com que 007 tire o smoking e o coldre do armário. Se, do ponto de vista da ação e dos set-pieces, além da caracterização do personagem, a Era Craig foi definitivamente impactada pelo Bourne de Paul Greengrass, na formatação da franquia, a maior influência foi a trilogia do Batman de Christopher Nolan. Se Cassino Royale foi o equivalente a um Batman Begins (com um Bond ainda rústico, conseguindo sua licença para matar e sofrendo a perda que justificaria sua misoginia e frieza emocional), aqui o que o diretor Cari Fukunaga e os roteiristas Neal Purvis, Robert Wade e Phoebe Waller-Bridge (Fleabag!) fazem é dar uma conclusão a essa narrativa, com um herói extenuado, que só quer se aliviar do fardo do dever (não é nem a primeira vez que ele tenta) e ter uma segunda chance com a mulher que ama. Qualquer semelhança com Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge não é mera coincidência.



Portanto, o núcleo emocional do filme não está na ameaça global nem na missão, mas no conflito do personagem e, assim como no primeiro filme, no desenlace do relacionamento de Bond com a mulher que ama, com a diferença que, em Cassino Royale, assim como em Operação Skyfall, havia um vilão, não só ameaçador, mas carismático e envolvente. Infelizmente, o Lyutsifer (meu Deus) Safin de Rami Malek consegue ser tão desinteressante quanto o Dominic Greene de Quantum of Solace. Com a sua afetação, modulação de voz baixa, cicatrizes na pele (vilões de Bond têm uma marca física, e aqui há dois deles assim), Malek parece mais ameaçador com o rosto coberto por uma máscara kabuki do que sem ela. A sequência pré-créditos em que ele aparece é até filmada com muito estilo, mas o antagonista se mostra mais desinteressante conforme se revela. Fukunaga tenta compensar isso construindo uma atmosfera lúgubre, oscilando entre planos mais fechados e outros extremamente abertos, com um ângulo de cima para baixo de 90 graus, o famoso “olhar de Deus”, pouco utilizado em filmes de ação. Aliás, a ação do filme é oposta à tendência contemporânea do shaky-cam e dos múltiplos cortes. A movimentação de câmera é fluida, os cortes são espaçados, a compreensão da misancene é respeitada, embora haja uma cena a mais do que o necessário de perseguição de carros. Indício do bom leque de utilização de câmera do diretor é que dois dos momentos de ação mais tensos do longa se dão em uma cena de planos e contra-planos estáticos dentro de um carro e em um curto plano-sequência de luta corpo a corpo subindo uma escada. Já a fotografia de Linus Sandgreen, embora não tenha a exuberância visual de Operação Skyfall (Roger Deakins faz falta), é eficiente em momentos pontuais, como ao elaborar toda a sequência na Itália, a vida noturna da Jamaica e uma cena de inferno no mar com tons avermelhados à noite.



Mas este ainda é um filme de James Bond e, por mais desconstruído que o personagem esteja, alguns elementos particulares do agente inglês permanecem intactos. O longa abre com a sequência do cano da arma, mas sem sangue dessa vez (sendo reconstruída de forma diegética mais tarde no filme) e a abertura pré-créditos, que é uma das mais longas da franquia. Alguns elementos são tirados da época da Guerra Fria, como um cientista louco russo, uma visita a Cuba, além da ilha-esconderijo do vilão e seu plano de destruição global. Para os fãs mais ardorosos, há mais easter-eggs do que os que cabem nesse texto, como a casa de Bond na Jamaica, que reproduz GoldenEye – morada do criador do personagem - e uma referência musical a A Serviço Secreto de Sua Majestade. Felix Leiter (Jeffrey Wright), M (Ralph Fiennes, excelente como sempre), Q (Ben Whishaw) e Moneypenny (Naomi Harris) retornam, e a torcida é que seus intérpretes continuem na série apesar da despedida de Craig. Nenhum filme de 007, porém, está completo sem suas Bond-Girls, e o elenco feminino é caprichado. Léa Seydoux reprisa o seu papel de Spectre com mais intensidade porque aqui há muito mais com o que trabalhar. Já a agente Nomi de Lashana Lynch é mais uma resposta bem-humorada dos produtores ao público que queria uma versão 007 de sexo feminino ou de origem africana. No entanto, o destaque absoluto é a personagem da Aña de Armas, a agente cubana Paloma, que faz par ao indefectível smoking de Bond ao lutar e atirar magnificamente com um longo vestido de noite e saltos altos. A sequência é intensa e charmosa, a química funciona perfeitamente (mesmo sem uma relação sexual entre eles) e tudo acaba rápido demais, deixando um gosto de quero mais no público.



Não obstante essas familiaridades, o tom do filme é distinto por que o tema passa longe de ser a hiperbólica ameaça global. O tema do último filme de Daniel Craig como James Bond, como o próprio título indica, é o tempo. Isso é perceptível na própria fisionomia do ator, mais envelhecido e com o peso da incumbência física de ter interpretado esse papel por 15 anos. No primeiro ato do filme, essa relação com a própria finitude e temporalidade já fica explícita no diálogo no qual que Bond almeja ter todo o tempo do mundo, como diz a canção, para ficar ao lado de sua amada sem precisar olhar por cima do ombro, ou seja, deixar definitivamente o passado para trás. Não é à toa, portanto, que Bond visite o túmulo de Vésper, fechando o ciclo iniciado no primeiro longa, após presenciar uma fictícia cerimônia italiana que consiste em queimar lembranças do passado. Logo, o conflito principal da trama é o deste homem dividido entre o dever e o amor, entre continuar a ser basicamente um assassino a serviço de seu país (cuja lógica colonialista também é colocada em xeque em determinado momento) ou abraçar uma vida normal, o que basicamente o despiria de tudo o que faz dele James Bond, de seu número 007 a suas missões, com veículos, viagens, gadgets e casos passageiros. Desta forma, aquilo pelo qual ele anseia é o futuro, e isso é o elemento inédito em uma franquia que, por 6 décadas, lutou para se manter relevante ao permanecer a mesma. Esse desvio de perspectiva - que teve seu início em Cassino Royale e seu ápice em Skyfall - vai, certamente, irritar muitos dos fãs mais tradicionalistas em seu desfecho, mas a coragem de fazê-lo sem reservas, tanto dos produtores quanto do intérprete, é o que dá ao Bond de Craig um âmago que simplesmente faltava às outras versões. Well done, Mr. Craig. Missão cumprida.



bottom of page